Por Sami Nayef
Jean Baudrillard, em seu livro Simulacros e simulações, conta a fábula sobre um grupo de cartógrafos que criam um mapa completo de um reino. Nessa fábula existe a ideia de que o mapa é sempre anterior ao território, que o precede. O território parece estar lá, – o outro também parece estar – fazendo com que a ideia de realidade seja sempre uma representação da realidade. Jorge Luís Borges descreve de forma precisa o que aconteceu com o trabalho dos cartógrafos:
Naquele Império, a arte da cartografia alcançou tal perfeição que o mapa de uma única província ocupava toda uma cidade, e o mapa do império, toda uma província. Com o tempo, esses mapas desmesurados não foram satisfatórios e os Colégios de Cartógrafos levantaram um mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos afeitas ao Estudo da Cartografia, as gerações seguintes entenderam que esse dilatado mapa era inútil e não sem impiedade o entregaram às inclemências do sol e dos invernos. Nos desertos do oeste perduram despedaçadas ruínas do Mapa, habitadas por animais e por mendigos; em todo o país não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas. (Borges, 1999, p. 247)
Percebe-se a anterioridade sendo destacada por Borges. Havia uma ideia de mapa que é anterior ao território. Assim, o mapa precede o território. O território parece estar lá, – o outro também parece estar – a ideia de realidade é precedida por essa representação da realidade. Sem ela cartógrafos e mapas são irrelevantes, mas talvez não sejam apenas eles. Para Baudrillard (1991, p.8.), “desapareceu a diferença soberana de um para o outro, que constituía o encanto da abstração”. O imaginário representativo desaparece, bem como todas as referências, sobrando apenas o vazio da representatividade.
O sujeito que vai abandonando a realidade irremediavelmente avança em direção há uma nova forma de realidade. Essa é a realidade sem essência, qeu de alguma forma já se experimenta no mundo do consumo de produtos e serviços: sexo virtual, relacionamentos virtuais, amizades virtuais, imagens virtuais… Como tudo já pode ser simulado, retirando a necessária essência que precede, estaremos diante do abismo dos desenhos antigos?
Esse lugar poderá produzir, sobre os corpo, o mesmo efeito narrado por Borges. A realidade do mapa de Baudrillard, que apontava para um simbólico que ia se desfragmentando se assemelha ao que hoje vai se transmutando para tornar superficial e obsoleto o estado anterior. O antigo corpo assim como o mapa será descartado? Um novo corpo será criado? Não foi exatamente essa a previsão do historiador Yuval Harari em Homo Deus: “Os principais produtos do século XXI serão corpos, cérebros e mentes…”
Jacques Lacan foi preciso quando fez a distinção entre prazer e gozo. Para Lacan é sempre perigoso, ou melhor, mortal, o excesso de gozo (jouissance), que está muito além do prazer (moderado). Isso explica por que quase ninguém vê problema no consume de café sem a essência do café, nem de cerveja sem álcool, sorvete sem gordura ou sexo sem sexo. Essas essências tornaram-se “obsoleta”, talvez em nome da boa saúde ou do politicamente correto, quem sabe, e seu consumo pode ser visto como prazer. Mas o corpo sem sua essência, cobrará um novo palco para atuar.
Esse novo palco exige um esforço de permanência contínuo, um estado de fluidez infinita, quase divina, por que as possibilidades oferecidas são infinitas e não podem ser perdidas ou adiadas. Tudo o que se quer, agora, é estar nesse palco com um novo corpo, sem limites, sem a prisão do tempo, do espaço ou do lugar. Isso será um gozo mortal?