Por Flávio Adriano Nantes
À memória de Marisa Letícia Lula da Silva
Aqueles que me conhecem mais de perto e/ou que convivem comigo sabem que às vezes e dependendo do grau de afeto do acontecimento, só consigo me expressar de modo adequado escrevendo. Sempre desconfiei que me expresso melhor escrevendo. Daí que preciso escrever, como se estivesse falando (escrever a fala) acerca dos acontecimentos de 01/01/2023, por ocasião da posse do presidente da Nação Luiz Inácio Lula da Silva, aquele que fez menção às palavras de Dona Lindu (Eurídice Ferreira de Mello), sua mãe, e teimou… Teimou a miséria, a fome, a falta de educação escolástica (que ironia, não?! o maior estadista que este país já teve, o mais democrático, amoroso, gentil, delicado, não se sentou nos bancos da academia), teimou os assédios, as mentiras, um falso julgamento, teimou uma prisão injusta de mais de 500 dias, teimou, teimou, teimou, até se tornar por três vezes, eleito pelo voto popular, o presidente do Brasil.
Quando cheguei à Esplanada dos Ministérios, fui tomado por uma multidão de milhares e milhares de pessoas que acreditam na construção de dias melhores, que deixarão de ser xingadas, assediadas, injuriadas, pelo homem que ocupou o cargo máximo do executivo brasileiro entre os anos de 2019 e 2022. A impressão que tive é que aquela multidão inteira me abraçava, me beijava, me confortava, e me dizia: “acabou, acabou, vai ficar tudo bem; eles não vão mais nos machucar, vilipendiar nossos direitos, dizer que é feio ser gay, lésbica, trans, indígena, preto, PcD; não usarão mais o nome do deus cristão para sonegar nosso status de cidadã/cidadão”.
Ademais de abraçado, me senti consolado pela mágoa de muitas pessoas que eu amava profundamente e preferiam continuar apoiando o ex mandatário, antes e depois das eleições presidenciais de 2018, que mentia zelar pela família, pátria, propriedade. (A composição de Chico César resume o que este governo é, melhor, foi: “Cães danados do fascismo […]/ Fruto podre do cinismo/ Para oprimir as gentes/ Nos manter no escravismo/ Pra nos empurrar no abismo/ E nos triturar com os dentes/ Ê, república de parentes, pode crer/ Na nova Babilônia eu e você/ Somos só carne humana pra moer/ E o amor não é pra nós”). Mesmo sabendo que ele desprezava com veemência pessoas como eu, um homem autodeclarado gay, preferiram o mito-guia a mim. Isso não me magoa mais porque as pessoas escolhem suas vidas e os caminhos que querem trilhar. Eu escolhi o meu e não abro mão. Talvez eles fizeram o mesmo, mas vislumbro que um dia a grande ficha da Laerte caia também na consciência deles e re-vejam o quão nefasto foi flertar com alguém cujas ideias faziam apologia à violência, à ditadura civil-empresarial-militar, à tortura, à morte, à cultura do estupro ao mencionar que “pintou um clima” com meninas, ou ainda, ao afirmar publicamente que não estupraria uma parlamentar porque ela era feia.
Num dado momento dos eventos relacionados à posse, no show Festival do Futuro, era madrugada e eu havia cantado, dançado, me emocionado, com Johnny Hooker, Teresa Cristina, Zélia Duncan, Tulipa Ruiz, Romero Ferro, Chico César, Geraldo Azevedo, Odair José, e tantos outros, saí para comprar cerveja (porque eu não sou de ferro) e percebi que algumas pessoas começaram a correr em direção ao palco porque haviam chegado o presidente Lula da Silva e a primeira dama Janja Lula da Silva. Ele, sereno, firme, gentil; ela, deslumbrante. Eles foram até lá para agradecer pela presença de todos mais uma vez, para comemorar e dizer para que aproveitássemos a festa da democracia. Um amigo meu e eu já estávamos sentados na grama da Praça dos Três Poderes, estáticos, vibrando, apaixonados por tudo, nos queimando com cada palavra, quando o presidente, num discurso improvisado, disse algo mais ou menos assim: vocês que votaram em mim e foram xingados, destratados por isso, vocês são os responsáveis por reestabelecer a democracia brasileira. Chorei (e neste momento em que escrevo, volto a me emocionar). Porque eu acredito na democracia, num projeto de nação pautado por uma perspectiva comunitária-social, acredito num projeto de justiça e equidade para todos os brasileiros, sem exceção.
Quis gritar: sim, Lula, eu fui xingado, destratado, assediado no trabalho, no trânsito, no elevador do prédio, no shopping (ao usar a camiseta Lula livre), nos encontros que inadvertidamente havia apoiadores ferrenhos do ex mandatário, nas refeições em família. Mas passou, agora estamos aqui com você.
Janja, com aquele sorriso mais lindo e meigo, agradeceu, e Margareth Menezes, a Ministra da Cultura, começou a gritar “eu falei faraóóóóóóóó…” Eu estava leve. Eram quase 02h da manhã, minha caravana sairia às 03h, precisava deixar a Esplanada. Me despedi de meu amigo que, assim como eu, não conseguia dizer nada… Eu o beijei com candura e tomei a avenida onde ficam os Ministérios e era como se o asfalto estive coberto de girassóis, era como se pelas gretas do asfalto brotassem pés de girassóis.
Flávio Adriano Nantes
Verão de 2023