Por Flávio Adriano Nantes (de morangos, de afetos e outras coisas)
para os que acreditam na produção de um ato falho proveniente do inconsciente (o lugar das nossas verdades mais categóricas), sabem que o atual titular do palácio do planalto nunca se considerou ou se viu como presidente da nação, senão como deputado; um deputado de cuja carreira política a compreendo como exangue, inexpressiva, sem movimentos em direção à democracia.
na esteira deste ato falho, está claro que o mandatário não pode/não consegue (nos) governar (e ele sabe disto); não pode porque é um homem embrutecido pela mentira, insensibilidade, desafetos aos mais carentes; não pode governar porque sua capacidade de outridade é mínima, senão inexistente; não pode governar porque prefere gritar com aqueles a quem pode exercer o poder atroz; não pode governar porque se satisfaz com o exercício de poder sobre os mais fracos.
quando estamos estudando acerca dos mitos e suas atualizações, nos damos conta de que todas as verdades (leia-se aqui mitos) são construções humanas engendradas de forma deliberada para anunciar às pessoas (comunidade) o modo como elas devem operacionalizar a vida política-social; o modus operandi, então, construído a partir dessa verdade entra em vigor pela linguagem, elemento social-humano carregado de ideologia.
a linguagem desde sempre foi estruturada por uma perspectiva ideológica por conter em si uma intenção/função. neste sentido, plasmar na imagem do atual presidente da república as formas do mito, denominá-lo mito, contém em si uma intenção: convencer a comunidade de que deve haver um salvador, de que podemos ser salvos, de que nascerá um messias que vai redimir a humanidade.
no mito há verdades? há, muitas, mas elas precisam ser pensadas pela óptica da política democrática. um salvador, aquele que pode nos redimir, perpetrará, sempre, um exercício de poder, mais ou menos assim: “eu lhes salvo desde que todos façam o que eu digo.”
“fazer o que eu digo” com o intuito de salvação é por si só um gesto altamente antidemocrático porque não há discussão, não há tomadas de pontos de vista, não há o outro nem demandas divergentes, instituindo a falta de espaço ao outro-divergente, ao outro-classe-raça-gênero, ao outro com sua vida que não é a minha; logo, eu não o vejo como um dos meus.
um amigo que mora fora me disse algo acerca da fragilidade da vida humana (Italo Diego) e do quanto muitos de nós, aparelhados ao Estado repressor, legitimam práticas de intolerância contra determinados sujeitos, precarizando ainda mais a vida. talvez este meu amigo estivesse tentando me fazer entender por que estamos tão identificados à destruição da vida e tudo o que ela significa… eu, na minha falta de resposta e arrogância intelectual, convoquei Clarice Lispector para me socorrer: por enquanto é tempo de morangos. mas ainda quero fazer menção às palavras da escritora brasileira: ainda é tempo de proteger a vida humana, de protegermos uns aos outros, de nos protegermos de (nos) amarmos.
nos limites opostos do que penso ser a política dos afetos, está a maquinaria estatal de morte, a necropolítica (Mbembe), descartando as vidas que não servem para levar a termo as ordens míticas do Estado-nação. que vidas são essas? as precárias, as que não são passíveis de luto (Butler), as inconvenientes (Silviano Santiago), ou aquelas que simplesmente divergem.
a um ser-mito não se diz não; ele não pode ser contrariado, questionado, posto à prova, contra-argumentado. ou cumprem-se as demandas-desejos (inclusive aquelas que estão para fora dos limites constitucionais), ou o peso do ódio implacável recairá sobre o sujeito da oposição. por isso que um mito, um salvador, um santo, uma criação verbal, não podem nos salvar; não apenas não nos salvam, como nos alocam na mais absoluta abjeção social e política.
mas Clarice é um mistério que Drummond e eu ainda não deciframos…
nesse texto incoeso sobre ato falho, política, mito, sociedade, morangos, talvez eu queira apenas dizer que por enquanto é tempo de vida.