Por Rosilene Caramalac
A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da Casa-Grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.
(Conceição Evaristo)
Por Rosilene Caramalac
O livro de Conceição Evaristo Becos da memória trata da complexidade humana, trazendo à tona a nossa ancestralidade e a ideia perturbadora de como ainda vivemos num mundo habitado pela fome, miséria ou, como diz a autora “dos que a cada dia têm a vida por um fio” porque a sociedade brasileira foi e continua sendo escravocrata, atolada em preconceitos, exclusão e com uma violência ilógica contra os povos originários e os pretos.
Ao escrever essa pequena reflexão sobre o livro, voltou à minha memória uma pequena cena do cotidiano: numa viagem para o Chile, no meio daquela imensidão que é a Cordilheira dos Andes, mais reflexiva que o habitual (afinal não é todo dia que você está diante de uma obra maravilhosa como aquela), logo após o almoço que aconteceu aos pés da Cordilheira, um brasileiro que estava na excursão solta a seguinte frase para o guia, que era chileno: “a nossa bandeira é mais bonita por que não tem vermelho nela”. Respirei fundo e fui fazendo aquele movimento que precede a saída da palavra. Calei-me porque mais rápido do que eu, foi o guia: “o vermelho de nossa bandeira representa o sangue que foi derramado dos nossos ancestrais indígenas”. A resposta foi cirúrgica. Naquele momento a Cordilheira “dava para a minha vida inteira, para todo o meu viver”.
O vermelho é sempre associado à esquerda, ao comunismo, mas nunca ao sangue dos pretos, dos indígenas, dos pobres. Isso deveria cair em nós “como uma pedra no peito. Pedras pontiagudas, e foram tantas” que esses povos receberam e, ainda, de novo e de novo…
É uma dor firme, persistente que nos recusamos a enxergar.
Em Becos da memória somos convocados o tempo todo a ver e a sentir no peito as dores, as tantas histórias de perdas, acontecendo gerações após gerações de sujeitas e sujeitos (pretas e pretos) que construíram as riquezas deste país com o suor e sangue de seus corpos.
No entanto, não é um livro de amarguras, de tristezas, mesmo que elas apareçam no texto. Descobri no livro que há vida, que apesar do abandono, da miséria e da dor, tem invenção, alegrias, histórias contadas, recontadas, recortadas, mostrando que “boca fechada não entra mosquito, mas não cabem risos e sorrisos”. Que a boca tem a função da fala, traz o lugar de fala e que, apesar dela causar equivocações, ela é a única saída que temos.
E na vida dos becos e fora dos becos cabem as memórias, mas se elas forem esquecidas, diria a psicanálise, seriam reprimidas ou recalcadas. “As histórias são inventadas mesmo as reais, quando são contadas”, escreve Conceição Evaristo. Então precisamos contar as histórias, precisamos recontar a nossa história – a nossa como sujeitos, mas também como Nação. As memórias, as histórias de Conceição se passam nos becos da favela e não deixar as histórias morrerem é urgente para que possamos perseguir uma escrevivência.
Fica o convite para ler esse texto que nos tira do chão como a força de um tufão.
Livro: Evaristo, Conceição. Becos da Memória. 3 ed. – Rio de Janeiro: Palmas, 2017.