Por Rosilene Caramalac
Relendo partes do livro “A sociedade do Cansaço”, de Byung Chul Han[i], o autor assinala que não temos mais a sociedade disciplinar de Foucault, cuja ideia era uma sociedade feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas. Mesmo que ainda hoje existam tais instituições, ou seja, a sociedade disciplinar, temos muito mais na atualidade, na perspectiva do autor, a sociedade do desempenho Esta, que solapou aquela, estrutura-se por uma sociedade de academias, alimentação fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas, sim, uma sociedade de desempenho, conclui o autor.
Há a ideia exaustiva de desempenho em tudo que fazemos ou pensamos, comandados por uma sociedade que busca sempre a positividade, a supervalorização da produtividade, a cultura massacrante da meritocracia, a hiperconexão e o discurso de que podemos ser curados de tudo…
Parto desta última: a ideia de cura. Ela deve ser tomada com cautela, pois do que podemos ser curados? Com certeza não é da dor de viver. O homem que não é uma máquina, apesar de muitas vezes a ciência querer transformá-lo em tal, não pode ser curado dos seus sofrimentos psíquicos. A historiadora e psicanalista, Elisabeth Roudinesco, escreve tão bem no seu livro, “Por que a Psicanálise?”[ii], que a sociedade democrática moderna quer banir de seu horizonte a realidade do infortúnio, da morte, ao mesmo tempo em que busca integrar tudo num sistema único, eliminando assim, as diferenças e as resistências. Deste modo, em nome do sucesso econômico, a sociedade contemporânea tenta abolir a ideia de conflito; somos – do ponto de vista psicanalítico – absolutamente conflitados, somos divididos. É preciso que o próprio psicólogo não abra mão por esta referência, pois pode perder um importante olhar, ou melhor, dizendo, uma importante escuta, que é a da subjetividade, o que, muitas vezes, é colocado como sendo o resto no discurso e das práticas da ciência da natureza. Sim, tão afundados que estamos no campo tecnológico, farmacológico, da uniformização da linguagem empregada, fazendo a correlacionar-se sempre aos mesmos referentes, que a nossa subjeqtividade que nos singulariza, nos torna sujeitos, passa a ser visto como restos.
Então podemos nos perguntar: o que a Psicanálise tem a dizer a respeito de tudo isso? Ela revela os encaminhamentos neuróticos da sociedade contemporânea: as tentativas de deter as doenças, a morte, buscando sempre a ideia de saúde, de educação e, pior ainda, de vidas perfeitas.
É salutar a vantagem do avanço da ciência, dos medicamentos e é tolice ignorar o auxílio que eles podem trazer ao sujeito, mas é preciso lembrar que, muitas vezes, aceita-se a medicação, o diagnóstico sem nenhuma crítica ao uso destes. Então é preciso cautela em uma época em que o comportamento do homem é visto apenas pela ação de um cérebro, cuja verdade estaria apenas no funcionamento deste. Há ainda um efeito nefasto, na medida em que isto gera uma desimplicação do sujeito, ou seja, se o problema é um neurotransmissor, logo não “tenho” responsabilidade sobre isto. Observamos de forma muito acentuada nos diagnósticos, muitas vezes, apressados sobre depressão. É comum aparecer sujeitos no consultório médico pedindo medicação por estar “deprimido” porque sua mãe morreu ontem. Mas não é extremamente “normal” alguém ficar triste, “deprimido” já que perdeu a mãe um dia antes? O pior é que na grande maioria das vezes o medicamento é receitado.
Então o que é incurável? Viver!, Viver com os (des)encontros, com os paradoxos, com as nossas dores, as nossas marcas, as paixões, os despropósitos….a morte. O grande escritor Guimarães Rosa[iii] dizia: viver não é muito perigoso? Mas ultimamente há uma insistência em banir isto da subjetividade. E ao classificar o nosso sofrimento, além de desimplicar o sujeito, perdemos a singularidade do sofrimento, pois quando alguém diz estou deprimido, sempre poderá encontrar um eu também, eu também….. Mas a pessoa que está se definindo (ou foi definida) como deprimida, panicada, hiperativa, ansiosa, entre tantas outras classificações, já se perguntou o que é este estar “deprimida”, do que fala o seu “pânico”, a sua “hiperatividade” ou a sua “ansiedade”?
Somos constantemente estimulados a nos prevenir o tempo todo, contudo, a grande questão permanece: prevenir contra o quê? Como? A partir de que critérios? Talvez possamos altera a pergunta: porque precisamos manter o mal estar sob um controle? É preciso aprender a viver…. O que estou querendo dizer com aprender a viver? Este aprender não está ligado a fórmulas e receitas, mas sim, estou pensando no que nos transmitiu Lacan na psicanálise, ao dizer que, é preciso encontrar algo novo no dizer, uma nova forma de dizer. Então o mal estar incurável deve nos fazer criar algo novo para a vida. Penso que, nisto reside o valor da diferença e não o famoso “eu também”.
Os novos significantes, que, como diz Lacan[iv], são somente os significantes novos que escapam do código, são estes que verdadeiramente criam sentido, mas na maioria das vezes nessa sociedade do cansaço, não buscamos significantes novos, ficamos apenas nos significantes conhecidos, no que em latim seria apenas asinus asinum fricat, ou seja: asno que se esfrega com asno. Há um valor na diferença, no particular de cada um, no singular de cada sintoma, que precisa ser pensado pelo sujeito. E nesta particularidade, nesta singularidade é que está todo o valor da diferença. É preciso pensar que o conceito de “cura”, de ter o mal estar sob controle, pressupõe um ideal a ser atingido, um anormal a ser corrigido, uma verdade a ser revelada. Então, a cura se inscreveria num universal para todos. Mas a grande pergunta é como instituir o singular de cada um? Há sempre um “defeito” sem remédio (oxalá!!!). Ao sujeito cabe apontar esses percalços de verdade, que precisa ir muito além do social, deve refletir o vazio, o irrepresentável da vida.
Uma vida repleta de defeitos e de coragem!!!!!
[i] HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petropólis: Vozes, 2017.
[ii] ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zaha. Ed.2000.
[iii] GUIMARÃES, Rosa, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1986.
[iv] LACAN, Jacques. (1953-1954) O seminário, livro: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1992.