O obsceno já não precisa ser encenado. Ele é apresentado no seu absoluto esplendor, vulgaridade, crueldade e sem nenhuma restrição nas ruas do mundo. Quem observa também não precisa se preocupar com o que está por traz dos atos praticados pelo poder. Não há mais sutilezas e tudo é declarado orgulhosamente e violentamente. Crimes horríveis já não carecem de fingimento e não há preocupação em escondê-los embaixo do tapete da burocracia. Não há mais nenhuma encenação para tentar disfarçar o obsceno em ato nobre. Diante dessa realidade é possivel fingir inocência? Se a resposta for sim, será preciso encarar o cinismo que salta na nossa frente quando desviamos o olhar para o lado e fica, então, evidente o orgulho dos criminosos no Tik Tok. Tudo está sendo transmitido ao vivo, sem nenhuma preocupação em disfarçar ou esconder o que quer que seja. Esse é um momento de obscenidades no mundo, onde a noção de justiça foi subvertida e o mal não só está sendo feito, agora ele deve aparecer no tecido social como o que é – puro mal, não mais mascarado por alguma causa honesta como afirma Slavoj Žižek.
“Ubi solitudinem faciunt, pacem appellant”. Essa descrição feita pelo historiador Tacitus há 2000 anos ele viu, descreveu de forma direta, usando palavras certeiras. “Auferre, trucidare, rapere, falsis nominibus imperiumou”…
Mentir, repetir a mentira, fazer da mentira o fundamento das muitas relações que se estabelecem no mundo. Pode-se afirmar, não sem razão, que a mentira é um dos fortes elos constitutivos das relações, como já aconteceu no passado. Uma massa enorme de sujeitos pelo mundo se aglomera em torno da mentira em um fluxograma de pictórica de um algoritmo qualquer. Parece que não existe, mas eles existem. Mas pior que a mentira, que cria essas realidades violentas que vemos no mundo, é a indiferença. Esse é um mundo, novamente, de indiferentes. Estão por toda parte mostrando o movimento de ombros que são sua característica mais marcante. Se o Outro não tem nenhuma importância, se ele se quer existe, o que regula o espaço das relações? O desaparecimento do Outro faz aparecer a desestruturação nas formas de relação, na forma como olhamos para o próximo. O vizinho agora é inimigo? Ou é um próximo-sem-razão-de-existir, pois não é mais possivel afirmar quem ele é? Esse paradoxo vai nos tornando cada vez mais parecidos com a personagem Suzie de John McNaughton no filme Garotas Selvagens de 1988. No final quem deve ficar vivo?
A indiferença e a mentira condenam milhões a morte, a fome, ao frio, a desolação todos os dias no mundo. Esse, agora, é um mundo onde se semeia mentira para mentirosos na maioria das vezes. A colheita do mal está em curso. A indiferença de muitos é o solo que permite a semeadura. Onde há indiferença, há mentira. O trabalho do mal puro está cada vez mais facil, como descreveu a escritora Sabaa Tahir:
“Amaldiçoe este mundo pelo que faz às mães, pelo que faz às filhas. Amaldiçoe-o por nos tornar fortes através da perda e da dor, nossos corações arrancados de nossos peitos de novo e de novo. Amaldiçoe-o por nos forçar a suportar.”
Mas de repente o olho se desvia um pouco da nuvem que nos persegue 24h (quando navegando na internet), e vê. O olho que vê não pode negar o que está sendo visto.
Uma realidade violenta e opressora, vista a olho nu, deveria unir as pessoas. Diante da tragédia não nos solidarizamos uns com os outros? Não sentimos um pouco a dor dos afligidos por uma enchente, incêndios, queda de aviões? Então afinal, como suportamos imagens de crianças sendo assassinadas todos os dias nos nossos celulares com tanta indiferença? Qual vida tem mais valor? As crianças, ao menos elas, não podem gozar de um status de defesa da sua vida e por esse consenso não devemos usar todos os recursos disponíveis para defendê-las, estejam elas onde estiverem? Mas tudo que o olho vê, vê distorcido, então nega, ou ignora! Mesmo que Haruki Murakami afirme no seu belíssimo Kafka à beira-mar, com razão, ser impossível ignorar o que acontece a nossa volta, uma grande parcela dá de ombros, finge, não sente. Eis a ignorância em seu estado mais puro. E ser um ignorante não é não saber, não ter frequentado a escola, não ter aprendido algo. Ser um ignorante é ver de forma inequívoca e clara e ainda assim decidir fechar os olhos. Um ignorante é aquele que sempre está diante dos fatos, os vê e fecha os olhos.
“Saquear, massacrar, roubar, essas coisas eles chamam erroneamente de império…” Foi isso que viu Tacitus e foi isso que ele descreveu com palavras. O que nós estamos vendo? O que estamos descrevendo? Somos o observador inocente, que mesmo vendo um mundo repleto de videos, relatos, fotos, testemunhos, transmissões ao vivo, likes, replays, exposto diariamente em redes sociais, ainda preferimos não gritar a pleno pulmões: “Eles fazem uma desolação e chamam isso de paz“.
Anotações:
TÁCITO, Cornelio. Historias. Edição e tradução de Juan Luis Conde. Madrid : Ediciones Cátedra, 2006
«Sabaa Tahir». A Reaper at the Gates (em inglês).
Ver em MURAKAMI, Haruki. Kafka à beira-mar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
[3] Ver Garotas Selvagens (1998) – IMDb
[4] Nicholas Humphrey, Uma História da Mente, Nova York: Simon and Schuster 1992, p. 171.
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