tradução e breve introdução de Flávio Adriano Nantes
Paul B. Preciado, diretor e roteirista do brilhante documentário Orlando: minha biografia política (2023, França), e autor de Eu sou o monstro que vos fala (2022), resultado de uma palestra proferida em 2019, Paris, na Jornada da Escola da Causa Freudiana, que causou um mal estar na civilização psicanalítica (no melhor sentido que podemos dar a isto), pois fez com que as instituições de psicanálise ao redor do mundo, provocadas pelo discurso do filósofo trans espanhol, ao menos refletissem acerca da prática da psicanálise enquanto um produto cujo reflexo cis-heteropatriarcal social ainda perpassa pela escuta do analista, escreveu uma carta ao genial cineasta espanhol, Pedro Almodóvar, e que agora temos acesso e podemos ler não apenas como um documento epistolar, senão político. Os apaixonados pelo trabalho dos dois compatriotas poderão observar que a paixão não pode ocultar o que precisa ser apontado/discutido numa sociedade que ainda não aceita as diferenças e se instrumentaliza a cada dia para que a vida destxs sujeitxs “diferentes”, xs abjetxs, seja invivível. Preciado, um apaixonado por Almodóvar, trata em sua carta sobre ambivalências: amor e desafeto, acolhimento e assédio, alegrias e dores.
Se a psicanálise tem razão de que todos somos ambivalentes, pelo menos os neuróticos, o leitor terá acesso às ambivalências apontadas por um remetente a um destinatário que é um dos maiores cineastas da atualidade.
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Uma carta de Paul B. Preciado para Pedro Almodóvar
Eu cresci num de seus filmes que minha família rodava sem que você soubesse, em meados dos anos 80, numa pequena cidade do norte da península ibérica. Esta época era chamada de Movida porque tudo se movia de forma diferente de antes da morte de Franco: os corpos, as ideias, a heroína e o dinheiro. O país se abria ao neoliberalismo, ao consumo e à comunicação de massa.
Naquela cidade provinciana, de maus hábitos, minha mãe era uma garota Almodóvar. Muito branca, olhos escuros e brilhantes, um delineado quase egípcio desenhado em cada pálpebra, cabelo preto intenso ajeitado sobre a cabeça tão verticalmente que, mais que um coque, poderíamos falar de uma arquitetura capilar, de uma peineta tecida com cabelo ou de um ninho de corvos. Seu cabelo era um biombo que separava o mundo-de-antes do mundo-de-depois e, como no cinema, estar à frente era muito melhor que estar atrás. Seus lábios vermelhos combinavam com o blazer e a saia lápis e uma jaqueta de tweed com abotoadura dupla.
Todos os dias, ela se arrumava para esperar meu pai. Eu ouvia o estalido do seu salto enquanto corria pelo corredor para chegar até a porta antes que meu pai tivesse tempo de abrir. Era ela quem lhe abria a porta. E ela, com um Chanel feito em casa, e ele, com seu macacão azul gordurento, se beijavam. Sua história, um labirinto de paixões entre o proprietário de uma oficina mecânica e uma costureira, era também um amor Almodóvar.
Aconteceu com a minha mãe, o que quase sempre acontece com as personagens femininas dos seus filmes: teve um filho transexual. Na realidade, eu não era nem menino nem menina, nem carne nem peixe, nem trigo nem cevada. Mas depois, vivendo em Nova Iorque, entre má educação e testosterona, ou talvez entre a medicina do final do século e a normalização social, eu fui me tornando um homem trans. Esta é a pele que habito hoje. Minha mãe sempre soube. E, como em seus filmes, preferiu esconder o tempo que pode.
Quando comecei a escrever sobre as minorias sexuais e de gênero, minha mãe me ligou e me disse: “Eu já sei que você apareceu outra vez no jornal falando sobre o seus assuntos. O que eu fiz para merecer isto? É uma pena! Mais uma vez sem poder ir ao cabeleireiro”. Escolher entre o cabelo e a honra. Escolher a honra e esconder o cabelo. Ou escolher o cabelo e perder a honra. Escolher entre amar a sua mãe e amar-se a si mesmo. Eu amo a minha mãe. E isso certamente faz com que eu me odeie um pouco. Agora você já sabe quase tudo sobre minha mãe. Se não, fale com ela.
Nos seus filmes, as pessoas trans são sempre mulheres, talvez porque você, como o seu personagem de Fabio MacNamara, imagina por intermédio delas um devir-feminino-de-si-mesmo.
Talvez porque você idealiza esta mutação. Você a erotiza. Ou tem medo dela. Talvez tudo isso ao mesmo tempo. Ou inclusive por qualquer outra razão. Em todo caso, o contrário deste axioma também é verdadeiro: todas as mulheres dos seus filmes são um pouco trans e, como Agrado e minha mãe, são mais autênticas quanto mais se parecem com o que sonharam para si mesmas.
Esta dissolução dos limites entre o que é considerado natural e artificial que você instala no coração e no corpo de suas personagens faz com que seus relatos, aparentemente como a mais clássica das tragédias gregas que giram em torno de questões fadadas ao fracasso, se transformem num convite a mudar o modo de ver o normal e o patológico, como em A lei do desejo, transgredindo atribuições normativas, você coloca Carmen Maura no papel de mulher trans, e prefere que Bibi Andersen encarne o papel da mulher cis, da mulher “normal”, da mãe.
É espantoso que você nunca tenha realmente ousado representar um homem trans. Apesar disso, todos homens heterossexuais de seus filmes são um pouco drag kings, se vestem de “homem”, usam uniforme militar ou eclesiástico para machucar ou mentir, como Imanol Arias, em A flor do meu segredo, ou colam bigode para representar a lei, como Miguel Bosé, em De salto alto. Ou são homens-lésbicas, como na versão feminina do mesmo Miguel Bosé – você o/a constrói com uma collage do cabelo de Maria Paredes e a voz de Luz Casal – que pergunta para Victoria Abril, a filha da mulher que Bosé imita:
_ Ei, Rebeca, te incomoda que eu imite mulheres?
_ Pelo contrário, eu adoro que imite minha mãe, responde Victoria Abril.
_ Eu gostaria de ser mais que uma mãe para você, replica Miguel Bosé, antes de lhe fazer sexo oral.
Eu sempre me senti em casa com seus filmes: amado e sagaz. Há quem poderá te acusar de falar do que você não conhece e de fazer das pessoas trans bode expiatório através do qual resolve seus próprios conflitos sexuais e de gênero. Em parte, é verdade. Mas não vamos te pedir que seja mais queer que Andy Warhol. Ou mais radical que Keneth Anger.
Você é uma bixa de seu tempo, mas sua escada bem que nos serviu para subir ao Gólgota da representação midiática. Caralho! Obrigado! Obrigado por ter inventado uma narrativa que nos permitiu rir e chorar com os heterossexuais, ainda que não tenhamos feito nem no mesmo momento nem pelas mesmas razões.
Como dizem na transumância, louca é a ovelha que se confessa ao lobo, mas eu vou por este caminho. Você nos usou, nos explorou, é verdade, mas fez de nós os heróis do cinema.
Se não te devo a vida, te devo em todo caso a imagem em movimento, a tesoura que nos corta e a cola que nos junta.
Para concluir, diria que você foi mais que uma mãe para mim. Não paralela, mas perpendicular. Destas que você cruza e te mostram um novo caminho. Embora hoje nossos caminhos sejam diferentes, eles não seriam os mesmos sem este encontro.
Amigavelmente,
Paul B. Preciado
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Nota • O texto abaixo foi traduzido sem fins lucrativos, por decisão do professor Flávio Adriano, no contexto de importância e relevância do texto aqui disponibilizado.
Flávio Adriano Nantes (é professor, pesquisador, escritor e está em processo de formação em psicanálise)