Por Marcia Sá Cavalcante Schuback
Publicado originalmente em Home – The Philosophical Salon
Há muito tempo, esperamos o fim do mundo. De fato, a promessa do fim do mundo tem sido por um bom tempo o arquétipo de todas as nossas promessas. Toda promessa feita espera por um dia, pelo último e último dia, pelo prazo, que é de fato o dia do fim da promessa, o dia do fim do fim. Mesmo as promessas de amor – amor que não pode esperar e que tende pela eternidade, mesmo que o esforço em si demore apenas um instante – mesmo essas promessas são feitas seguindo a fórmula sugerida por Peter Handke – “até o dia em que você se separar”. Ainda estamos aguardando o fim, seja do mundo ou de sermos assombrados pelo fim.
O dia do fim do mundo – o golpe de misericórdia do mundo – ainda não chegou. No entanto, o dia chega todos os dias, o que também implica que o dia termina todos os dias. “Dia” não significa nada além de chegar e terminar todos os dias, dia após dia. E se o fim de qualquer coisa, que inclui também o do mundo, está ligado à chegada de um dia, devemos então admitir que o fim do mundo chega todos os dias: que todos os dias o mundo acaba. Esta é uma maneira de dizer que o mundo é finito, mas também que a promessa do fim do mundo revela a finitude do mundo.
O livro de João intitulado Apocalipse, que tem sido lido há séculos como uma das principais narrativas sobre o fim do mundo, é de fato uma narrativa que revela a finitude do mundo. O que esse livro relata senão como a promessa do fim do mundo torna possível a contagem do tempo em épocas e reinos, o cálculo do tempo de acordo com a ideia de uma sucessão cronológica de antes e depois? É com base na promessa do fim do mundo que a finitude se torna uma questão de contagem aritmética e contabilidade moral. Do ponto de vista do fim do mundo, tudo o que veio antes, juntamente com toda a história (isto é, todos os tempos), torna-se visível ao mesmo tempo. No fim do mundo, a divisão do tempo em diferentes tempos é substituída por um esquema, pelo qual todos os tempos são unidos em uma história, que em si não pode ser dividida e que se diz ser a única possível e necessária. O Apocalipse é a promessa de uma história sem partes, sem diferenças, sem o “cada um”, assemelhando-se a todas as finitudes, mas excluindo a própria finitude e, acima de tudo, o dia. Esta é a visão de Macbeth, que sonha em “ser-tudo e fim de tudo”, uma fórmula através da qual Shakespeare mostrou como o desejo louco de ser-tudo não pode ser dissociado da violência da vontade de acabar com tudo.
Apocalipse, o livro do Apocalipse, é narrado em tom de exaltação antes do fim, o “tom apocalíptico” que Kant denunciaria em um de seus pequenos ensaios e que nem mesmo Derrida conseguiu se livrar em seu pensamento do tempo “por vir”. Mas este livro não é apenas uma recitação em um certo tom. É a apresentação do que deveríamos chamar de método, o método apocalíptico, que foi adotado desde tempos imemoriais na filosofia. O que o método apocalíptico propõe é o caminho de e para o fim como a única maneira de recuperar um sentido do mundo, mais significativo do que o próprio mundo.
Em outro texto intitulado “O fim de todas as coisas” (Das Ende aller Dinge), Kant viu muito bem, embora sem explicitá-lo, o sentido metodológico de postular “o fim do mundo”. Mantendo a ambigüidade da expressão “o fim de todas as coisas” que significa tanto o fim – finito, basta – de todas as coisas quanto a finalidade ou o propósito de todas as coisas, Kant reconheceu como a promessa ameaçadora do fim é o “meio”, diz ele, para chegar à ideia moral de uma finalidade última de todas as coisas, culminando no sentido moral do mundo. Dessa forma, o método apocalíptico demonstra como a promessa do fim do mundo revela a finitude do mundo não apenas como uma linha de contagens e contas, mas também como uma linha de finalidades.
O método apocalíptico adotado desde tempos imemoriais na filosofia revela a finitude do mundo através da traição. A finitude do mundo é traída quando é “reconquistada” por meio da produção desmoralizante de fins sem fim. E mesmo quando a filosofia propõe uma nova fórmula para recuperar a finitude traída do mundo – a saber, a fórmula fenomenológica anunciada por Edmund Husserl no final de suas Meditações cartesianas que diz: “perderemos o mundo através da epoché para recuperá-lo em uma meditação filosófica mais universal” – a matriz do método apocalíptico é reforçada. Parece que não há mais como revelar a finitude do mundo senão no fim do mundo. Esta é a armadilha no cerne da longa história que promete algo melhor e mais elevado do que o significado mundano.
O tom apocalíptico está se espalhando hoje. Ouvimos isso em todos os lugares, declarado em diferentes sotaques. Esse tom acompanha as guerras a favor e contra o capitalismo, a favor e contra o fim do mundo, a favor e contra a morte de Deus e o reencontro com o Deus perdido. O sentimento do mundo é o de se encontrar no meio de uma corrida que se acelera para o seu fim: não mais o fim da arte, da história, da filosofia, do homem, mas o fim de todos os recursos pertencentes ao mundo, à terra, ao planeta.
Falar sobre o fim do mundo é falar sobre a biodegradação do mundo, da terra, do planeta, como resultado da equação capitalista oferecida por Macbeth: ser tudo e fim de tudo. É falar sobre a velocidade com que os excessos de exclusão e alienação, de desigualdade e injustiça se movem; é falar de uma velocidade tão acelerada que as oposições entre o humano e o inumano, o racional e o irracional, o vivo e o morto são aniquiladas. O sentimento do mundo é o de já ter chegado ao fim do mundo. Em todos os lugares parece que o mundo acabou, embora desta vez sem nenhuma promessa de futuro, que, por sua vez, também foi degradado.
O fim do mundo já chegou. Chega todos os dias. Todos os dias encontramos os refugiados do fim de um mundo. O fim de um mundo exige que não o revelemos – como revelar o que não se esconde? – mas para cuidar dele, para que cada um de nós se tornasse seu guardião.
Márcia Sá Cavalcante Schuback
Marcia Sá Cavalcante Schuback é especialista em idealismo alemão, filosofia contemporânea e estética. Professora de filosofia na Universidade de Södertörn, na Suécia, é a tradutora de Ser e Tempo, de Martin Heidegger, para o português. Ela também é autora de dez livros e vários artigos que abordam temas de fenomenologia, existencialismo, hermenêutica e pensamento político.