Frida Kahlo: Entre o parceiro-fantasma e o parceiro-devastação (Por Aline Tatiane Bachega)
Por Aline Tatiana Bachega
Frida Kahlo (1907–1954) foi uma pintora mexicana cuja obra é reconhecida mundialmente por sua força expressiva e por sua íntima relação com o sofrimento. Autora de inúmeros autorretratos, ela transformou a própria dor física e psíquica em linguagem artística. Sua vida foi marcada por um grave acidente de bonde na juventude, que lhe causou múltiplas fraturas e sequelas, além de inúmeras cirurgias e abortos espontâneos. Mas foi sobretudo sua relação amorosa intensa e turbulenta com o também artista Diego Rivera que atravessou e alimentou sua produção. Frida é hoje símbolo da força feminina, da expressão da dor subjetiva e de um modo singular de inscrever o gozo na arte.
O vínculo entre Frida e Diego, repleto de rupturas e reencontros, infidelidades e devoção, permite problematizar duas figuras clínicas fundamentais no ensino da psicanálise lacaniana: o parceiro-fantasma, e o parceiro-devastação, conceito desenvolvido por Éric Laurent, sobretudo na clínica do feminino.
O parceiro-fantasma é uma construção psíquica que persiste para além da presença real do outro. Ele habita a memória e a fantasia, constituindo-se como um objeto parcial que retorna no campo do desejo e da repetição. Esse parceiro representa, muitas vezes, uma ausência estruturante, uma marca simbólica que organiza o enlaçamento amoroso do sujeito com o gozo e com o Outro. O parceiro-fantasma pode tanto servir de suplência quanto operar como obstáculo, provocando repetições inconscientes de vínculos dolorosos.
Já o parceiro-devastação, figura que emerge particularmente na posição feminina, introduz outra lógica: a do amor absoluto, sem medida, em que o Outro ocupa o lugar de um gozo totalizante. Nessa relação, o sujeito feminino se entrega sem reservas, borrando os limites entre si e o Outro. A devastação não advém da maldade do parceiro, mas da posição subjetiva de quem se oferece ao Outro como tudo, e, por isso mesmo, encontra-se esvaziado. Éric Laurent destaca que, nessa configuração, “o Outro não deixa nada para o sujeito, exceto o buraco em torno do qual ele gira”.
A relação de Frida com Diego exemplifica a oscilação entre esses dois modos de laço. Por um lado, Diego funciona como seu parceiro-fantasma: ele está presente em inúmeras obras, como figura que causa dor, mas também dá forma à criação. Em muitos autorretratos, Frida se representa ferida, sangrando, costurada e Diego aparece, ora na testa dela, ora como presença distante. É como se ele fosse o ponto em torno do qual sua produção subjetiva se organiza. Por outro lado, a intensidade com que ela se entregava ao vínculo amoroso a ponto de tolerar traições e rebaixamentos revelando traços de devastação. A célebre frase de Frida, “Sofri dois grandes acidentes na vida: o bonde e Diego. Diego foi, de longe, o pior”, condensa essa lógica paradoxal entre amar e ser aniquilada pelo amor.
O sofrimento amoroso, longe de ser mera contingência biográfica, adquire, em Frida, uma dimensão estrutural. Em Luto e melancolia, Freud já nos mostra como a perda do objeto pode arrastar o sujeito para uma identificação mortífera, onde o eu se empobrece. Lacan retoma essa lógica, mas desloca a centralidade para a relação do sujeito com o gozo: na posição feminina, o gozo do Outro, aquilo que escapa à simbolização pode se tornar devastador.
A clínica contemporânea evidencia com frequência esse tipo de vínculo: sujeitos que se organizam em torno de um parceiro que, ao mesmo tempo, sustenta e destrói. O amor, nesses casos, é vivido como absoluto, incondicional, e recusa o limite. A devastação não é um evento, mas uma posição. Trata-se de uma entrega que apaga o desejo, de uma alienação ao gozo do Outro que esvazia a subjetividade.
A leitura do caso Frida permite articular essas duas figuras clínicas sem reduzi-las a categorias diagnósticas. É possível pensar que Diego foi, para Frida, simultaneamente fantasma e devastação sua pintura funcionou como modo de dar forma àquilo que, no laço amoroso, tocava o real. A arte, nesse sentido, operou como suplência ao gozo devastador: ao se pintar dilacerada, Frida se inscreve como sujeito no lugar de onde poderia apenas restar o esvaziamento.
Retirar o amor da lógica da idealização e interrogá-lo como operador clínico é uma das contribuições fundamentais da psicanálise. Não se trata de julgar os amores excessivos, mas de escutá-los em sua função. O parceiro-fantasma pode ser o que sustenta um enredo libidinal; o parceiro-devastação, o que empurra à morte subjetiva. Ambos são efeitos de estrutura mas podem, também, ser tocados pela ética da psicanálise: a de inventar uma forma de desejar que não passe pela aniquilação de si.
Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia (1917). In: Obras Completas, vol. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). In: Obras Completas, vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: Mais, ainda (1972–1973). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LAURENT, Éric. “A mulher e o gozo”. In: QUINET, Antonio (org.). Figuras do feminino na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
LAURENT, Éric. A psicose ordinária e outras conferências. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007.
HERRERA, Hayden. Frida: A biografia de Frida Kahlo. São Paulo: Globo, 2011. KAHLO, Frida. Diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Por Aline Tatiana Bachega
Frida Kahlo (1907–1954) foi uma pintora mexicana cuja obra é reconhecida mundialmente por sua força expressiva e por sua íntima relação com o sofrimento. Autora de inúmeros autorretratos, ela transformou a própria dor física e psíquica em linguagem artística. Sua vida foi marcada por um grave acidente de bonde na juventude, que lhe causou múltiplas fraturas e sequelas, além de inúmeras cirurgias e abortos espontâneos. Mas foi sobretudo sua relação amorosa intensa e turbulenta com o também artista Diego Rivera que atravessou e alimentou sua produção. Frida é hoje símbolo da força feminina, da expressão da dor subjetiva e de um modo singular de inscrever o gozo na arte.
O vínculo entre Frida e Diego, repleto de rupturas e reencontros, infidelidades e devoção, permite problematizar duas figuras clínicas fundamentais no ensino da psicanálise lacaniana: o parceiro-fantasma, e o parceiro-devastação, conceito desenvolvido por Éric Laurent, sobretudo na clínica do feminino.
O parceiro-fantasma é uma construção psíquica que persiste para além da presença real do outro. Ele habita a memória e a fantasia, constituindo-se como um objeto parcial que retorna no campo do desejo e da repetição. Esse parceiro representa, muitas vezes, uma ausência estruturante, uma marca simbólica que organiza o enlaçamento amoroso do sujeito com o gozo e com o Outro. O parceiro-fantasma pode tanto servir de suplência quanto operar como obstáculo, provocando repetições inconscientes de vínculos dolorosos.
Já o parceiro-devastação, figura que emerge particularmente na posição feminina, introduz outra lógica: a do amor absoluto, sem medida, em que o Outro ocupa o lugar de um gozo totalizante. Nessa relação, o sujeito feminino se entrega sem reservas, borrando os limites entre si e o Outro. A devastação não advém da maldade do parceiro, mas da posição subjetiva de quem se oferece ao Outro como tudo, e, por isso mesmo, encontra-se esvaziado. Éric Laurent destaca que, nessa configuração, “o Outro não deixa nada para o sujeito, exceto o buraco em torno do qual ele gira”.
A relação de Frida com Diego exemplifica a oscilação entre esses dois modos de laço. Por um lado, Diego funciona como seu parceiro-fantasma: ele está presente em inúmeras obras, como figura que causa dor, mas também dá forma à criação. Em muitos autorretratos, Frida se representa ferida, sangrando, costurada e Diego aparece, ora na testa dela, ora como presença distante. É como se ele fosse o ponto em torno do qual sua produção subjetiva se organiza. Por outro lado, a intensidade com que ela se entregava ao vínculo amoroso a ponto de tolerar traições e rebaixamentos revelando traços de devastação. A célebre frase de Frida, “Sofri dois grandes acidentes na vida: o bonde e Diego. Diego foi, de longe, o pior”, condensa essa lógica paradoxal entre amar e ser aniquilada pelo amor.
O sofrimento amoroso, longe de ser mera contingência biográfica, adquire, em Frida, uma dimensão estrutural. Em Luto e melancolia, Freud já nos mostra como a perda do objeto pode arrastar o sujeito para uma identificação mortífera, onde o eu se empobrece. Lacan retoma essa lógica, mas desloca a centralidade para a relação do sujeito com o gozo: na posição feminina, o gozo do Outro, aquilo que escapa à simbolização pode se tornar devastador.
A clínica contemporânea evidencia com frequência esse tipo de vínculo: sujeitos que se organizam em torno de um parceiro que, ao mesmo tempo, sustenta e destrói. O amor, nesses casos, é vivido como absoluto, incondicional, e recusa o limite. A devastação não é um evento, mas uma posição. Trata-se de uma entrega que apaga o desejo, de uma alienação ao gozo do Outro que esvazia a subjetividade.
A leitura do caso Frida permite articular essas duas figuras clínicas sem reduzi-las a categorias diagnósticas. É possível pensar que Diego foi, para Frida, simultaneamente fantasma e devastação sua pintura funcionou como modo de dar forma àquilo que, no laço amoroso, tocava o real. A arte, nesse sentido, operou como suplência ao gozo devastador: ao se pintar dilacerada, Frida se inscreve como sujeito no lugar de onde poderia apenas restar o esvaziamento.
Retirar o amor da lógica da idealização e interrogá-lo como operador clínico é uma das contribuições fundamentais da psicanálise. Não se trata de julgar os amores excessivos, mas de escutá-los em sua função. O parceiro-fantasma pode ser o que sustenta um enredo libidinal; o parceiro-devastação, o que empurra à morte subjetiva. Ambos são efeitos de estrutura mas podem, também, ser tocados pela ética da psicanálise: a de inventar uma forma de desejar que não passe pela aniquilação de si.
Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia (1917). In: Obras Completas, vol. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). In: Obras Completas, vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: Mais, ainda (1972–1973). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LAURENT, Éric. “A mulher e o gozo”. In: QUINET, Antonio (org.). Figuras do feminino na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
LAURENT, Éric. A psicose ordinária e outras conferências. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007.
HERRERA, Hayden. Frida: A biografia de Frida Kahlo. São Paulo: Globo, 2011. KAHLO, Frida. Diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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