Por Flávio Adriano Nantes
O poema não é o mundo, é menos. Mas não quero desvalorizar a poesia, um poema move montanhas.
(Adília Lopes)
Por ter nascido numa família com muita (quase total) escassez financeira, não me era possível ter muitas vaidades nem certos caprichos (a mídia dizia: dinheiro não traz felicidade, bajulando minha miséria, numa clara alusão de apologia à pobreza). Vaidades e caprichos aqui no sentido de consumo e aquisição de bens e serviços. Beleza era luxo e extravagância. Era meu destino nunca me sentir bonito – a beleza não era para mim. Eu havia nascido para fracassar e estar sempre e sempre sob a égide da pobreza. Mas um dia fui salvo. Isso é outra história ou outra crônica.
Andando com más companhias (como costuma dizer minha mãe e que Adília Lopes traduziria assim: “Só gosto de pessoas boas/ quero lá saber que sejam inteligentes artistas sexy/ sei lá o quê/ se não são boas pessoas/ não prestam”), aprendi a gostar de queijo (produto que não havia em casa, na minha infância) e de vinho. Uns amigos metidos com psicanálise, filosofia, teatro, música, política (de esquerda, claro), direitos humanos, literatura, me convidaram para encontros de discussão destes tópicos elencados e durante o debate serviam vinho e diferentes tipos de queijo. O tempo foi passando, passando, e eu experienciava a cada novo encontro os afetos, a poesia e os queijos. Foi assim que adquiri esta vaidade caprichosa.
Como eu era analfabeto no tema – queijos e vinhos – passei a ler aleatoriamente textos que tratavam a questão; é que não queria participar das conversações, falando apenas de poesia, mas também de queijos e vinhos (talvez outra vaidade). Nestas buscas por informações gastronômicas, chegaram até mim uma série de textos, posts em redes sociais, podcast, propagandas, sobre queijos e vinho. E assim apareceram empórios, mercados e lojas de queijos (com vendas em modo analógico e digital) de diversos sabores e maturação diferenciada, ao que meus olhos se encheram de desejo. Queijos gourmetizados, diriam os mais entendidos. Preços também gourmets.
Pelas mesmas razões que me chegam textos sobre queijo, também recebo os que tratam de poesia, literatura, poetas, entre outros do mesmo campo semântico. Daí que um dia apareceu na tela do meu computador uma entrevista da poeta Adília Lopes (poeta para a qual tenho verdadeira devoção por seu trabalho/ manejo com as palavras, por jogar com as letras eruditas e as mais ordinárias da vida doméstica, alocando seu projeto estético numa espécie de entre-lugar (Silviano Santiago): do castiço e do popular) que não está bem, bem de graça no universo da internet, mas também aferrada à ferocidade mercadológica das editoras. Juntamente com a entrevista da portuguesa, estavam divulgando, pela editora Assírio & Alvim, também portuguesa, no Brasil, Dobra: poesia reunida. Estava diante dos meus olhos, na tela, todos os livros de Adília Lopes, em um único tomo, condensados. Eu os seguraria com um único braço e iria dando pulinhos pelos paralelepípedos das ruas até chegar à universidade e mostrar para as minhas alunas e os meus alunos. Sim, eu havia me transformado na garotinha de “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector, completamente inebriado pela possibilidade de ter Adília Lopes para mim, somente para mim. A poeta não pertenceria mais apenas à Adelaide Ivánova (prefaciadora do livro “Um jogo muito perigoso”, onde relata, entre outros elementos, a saga no desejo de encontrar Adília Lopes na cafeteria que a portuguesa frequenta numa freguesia de Lisboa. Ivánova, querendo ou não, passaria a dividir Adília comigo).
Adília Lopes pertenceria, repito, a mim, inclusive mais que aos próprios portugueses, seus compatriotas leitores, pois sua obra completa editada no Brasil incluía Pardais e Choupos, até então inéditos em obra completa editada na terrinha.
Mas qual a personagem clariciana, também eu deveria lutar ferozmente por meu amor-maior: a poesia, a poesia da portuguesa, e não ceder diante do meu desejo (Lacan). Então tomei meu veredicto: diante da porta da loja de queijo, com a vendedora estupefata me ouvindo, eu disse “não vou comprar o queijo, não posso, não tenho dinheiro; quer dizer, ter eu tenho, mas quero comprar um livro de poesia; vou deixar o queijo para um outro dia; de todos modos, muito obrigado”.
Adília me daria razão, pois ela é a poeta da economia, das palavras mínimas, dos poemas pequenos, da estética da ordinariedade: não pretende tratar de temas faraônicos nem babilônicos, mas do corredor de sua casa, por exemplo, que fica entre a cozinha e a sala onde se senta para ler e escrever. “É preciso desentropiar/ a casa/ todos os dias/ para adiar o kaos/ a poesia é a mulher-a-dias/ arruma o poema/ como arruma a casa/ que o terremoto ameaça/ a entropia de cada dia/ nos dai hoje/ o pó e o amor/ como o poema/ são feitos/ no dia a dia […]”.
Adília anota cotidianamente a hora exata em que as luzes públicas de sua rua são acesas.
Adília tem razão, um poema move montanhas de queijo.
Adília gosta de escrever sobre as pessoas boas e as não boas, aquelas prestam, as outras não (vide acima). Eu endosso!
Adília Lopes gosta de peixes.
Adília acredita em deus, eu não. “[…] e quando tenho/ vontade de chorar/ abrir um livro/ não me chega/ preciso de um abraço/ mas graças a Deus/ o mundo não é um livro/ e o acaso não existe/ no entanto gosto muito/ de livros/ e acredito na Ressureição/ dos livros/ e acredito que no Céu/ haja bibliotecas/ e se possa ler e escrever”.
Eu gosto de Adília Lopes e de queijos também.
(primavera de 2024 aqui no sul global)