Por Sami Nayef
Uma piada antiga que era contada na extinta República Democrática Alemã consegue capturar exatamente o sentimento de uma pós-modernidade fraturada. Ela ilustra a situação de um trabalhador alemão que muda para Sibéria por conta de um novo emprego. Esse trabalhador sabe que todas as suas cartas serão abertas e lidas por um órgão governamental de vigilância e alerta seus amigos antes de partir:
“Vamos estabelecer um código: se vocês receberem uma carta minha e ela estiver escrita em tinta azul, o conteúdo é verdadeiro; se estiver escrita em tinta vermelha, o conteúdo é falso.”
Depois de um mês, seus amigos recebem a primeira carta escrita em tinta azul:
“Tudo é maravilhoso aqui: as lojas estão cheias, a comida é abundante, os apartamentos são grandes e devidamente aquecidos, as salas de cinema exibem filmes do ocidente, há muitas meninas bonitas prontas para um caso – a única coisa indisponível é tinta vermelha.”
É estranho como essa piada, contada a muitas décadas atrás, se aproxima perigosamente da realidade presente. Em geral, talvez, a sensação que grande parte dos sujeitos experimentam é a de que gozamos de todas as liberdades que desejamos, mas quando miramos o quadro da liberdade de um ponto mais afastado, logo percebemos que “tinta vermelha” também não está totalmente disponível.
Ocasionalmente consumimos cerveja sem álcool, elas estão na moda. Na verdade, está na moda o consumo de produtos que retiram aquilo que nos é potencialmente ameaçador. Você pode beber a vontade e não mais se preocupar em ficar embriagado, agora você pode. Essa formula é resumida de forma brilhante pelo filosofo Slavo Žižek:
“No mercado atual, encontramos toda uma série de produtos privados de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme sem gordura, cerveja sem álcool… E a lista continua: e o sexo virtual como sexo sem sexo (…). (Žižek, 2003)
A coisa sem a coisa resume certa falta de disposição e principalmente a ausência de uma linguagem que consiga articular de forma clara que a liberdade experimentada pelos sujeitos hoje é um semblante de liberdade – como cerveja sem álcool, sexo sem sexo… – falta o essencial: Tinta vermelha!