Há corpos que o mundo vê e, ainda assim, decide ignorar. Há mortes que se repetem diante de câmeras, transmissões ao vivo, feeds de notícias e redes sociais, e, no entanto, permanecem politicamente irrelevantes. Achille Mbembe, em Necropolítica, nos ensina que a soberania contemporânea não se limita a administrar a vida; ela se manifesta no poder de determinar quem deve morrer, e, muitas vezes, de tornar a morte uma questão de indiferença:
“A expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer.”
Mbembe parte das ideias de Michel Foucault, que, em obras como Vigiar e Punir e História da Sexualidade, analisou como o poder moderno se organiza sobre os corpos, disciplinando-os, controlando-os, tornando-os dóceis ou produtivos. Foucault mostrou que o poder é exercido sobre a vida, mas Mbembe amplia essa análise: o poder também se exerce sobre a morte, definindo quais corpos podem desaparecer, quais mortes importam e quais podem ser dispensadas diante do olhar público.
Gaza é hoje o palco mais explícito dessa lógica. Cada ataque, cada bomba, cada morte de criança ou adulto é transmitido em tempo real, e o mundo assiste. A visibilidade das mortes não impede a continuidade do massacre; não há indignação suficiente para deter o genocídio. A morte é pública, mas a resposta é mínima — uma cruel ilustração de necropolítica: a morte dos corpos não precisa ser invisível para ser considerada irrelevante.
Contrastemos isso com os campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. Na época, o horror ocorria em segredo; as mortes eram, em grande parte, invisíveis ao mundo. Hoje, a diferença é que a morte é espetacularizada. O poder não precisa ocultar a violência; ele permite que se veja, documenta, mas ainda assim decide que certas vidas não importam. A visibilidade não cria valor, apenas expõe a indiferença organizada.
No Brasil, a pandemia de Covid-19 revelou outra face dessa mesma lógica. Milhares de mortes ocorreram sob políticas de omissão, subestimação e banalização. Declarações do ex chefe da nação ( “o mito”) como “Eu não sou coveiro” ou “Todo mundo vai morrer” transformaram vidas em estatísticas dispensáveis, corpos em números irrelevantes. Assim como em Gaza, a morte estava diante de todos, e mesmo assim a proteção não foi garantida, a ação efetiva não aconteceu. A necropolítica não depende do silêncio, mas da decisão de considerar certas vidas secundárias.
O fio que une Gaza e a Covid é claro: o poder moderno não apenas administra a vida; ele organiza a morte. Define quais corpos devem ser lembrados e quais podem desaparecer à vista de todos. A diferença é apenas a espetacularização: hoje assistimos, vemos imagens, choramos nas telas, mas as vidas permanecem descartáveis, a indiferença continua a governar.
Mbembe nos convoca a encarar essa realidade sem desviar o olhar. O que é mais perturbador não é apenas que alguns morrem, mas que suas mortes são visíveis e irrelevantes ao mesmo tempo. Gaza nos mostra, com uma brutalidade direta, que a necropolítica contemporânea não precisa da invisibilidade para exercer seu poder; basta que o mundo veja e continue inerte. A morte, então, torna-se espetáculo e instrumento de soberania, prolongando a lógica do poder sobre os corpos que Foucault já havia identificado, agora levada ao extremo sobre a própria vida e a própria morte.
Foucault, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 25.
Foucault, Michel. História da Sexualidade, Volume 1: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 136.
Mbembe, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2019, p. 15.